sábado, 29 de maio de 2010

Enfiteuse e Superfície

“Por maior que seja a patifaria, aquele que a comete escapa a toda e qualquer punição, desde que demonstre habilidade suficiente para escapar às malhas da lei penal.”
Rudolf Von Ihering

"Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a Corte o reconhece, porque a lei o permite".
Shylock, em êxtase proclama: "Oh juiz íntegro! Oh juiz sábio! Isso, sim, que é sentença! Vamos logo; preparai-vos."
O juiz então intervém: "Um momentinho apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: 'Uma libra de carne'. Tira, pois, o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito".
Ao ouvir isso, é Graciano, quem não se contém de alegria: "Oh juiz honesto! Toma nota, judeu: quanto ele é sábio!".
Perturbado, Shylock indaga se a lei diz isso. O juiz responde que ele pode ver o texto: "reclamaste justiça, fica certo de que terás justiça, talvez mesmo mais do que desejaras".
Shakespeare em “O Mercador de Veneza”

Enfiteuse

Enfiteuse, aforamento ou emprazamento é um instituto em extinção, já que não há mais previsão legal para sua instituição nas relações civis, remanescendo apenas a possibilidade de sua instituição em terrenos de marinha, já que o próprio Código Civil a prevê, no artigo 2.038, parágrafo 2.º.

Seu objetivo é a aquisição não de um terreno, mas apenas a sua superfície, em razão do preço ou da impossibilidade da compra do terreno. É assim que funciona, por exemplo, em um terreno extremamente caro, onde se compra apenas a superfície por um valor bem mais barato.

Também é possível em relação ao proprietário de uma grande quantidade de terras, e, temendo a perda delas, confere a outrem parcela essencial da propriedade, quer seja, apenas a sua superfície. Do outro lado, o adquirente desta superfície passa a ser o proprietário de fato, ficando com o domínio útil.

Entretanto, sua aplicação mais comum é nos terrenos em que a venda não é permitida, seja em razão do titular (ente público) ou limitação gravada no imóvel (inalienabilidade do imóvel).

É importante verificar que o próprio direito é uma limitação das ações físicas ou dos atos humanos. O direito, entretanto, aprofundando ainda mais, cria possibilidades de limitar as limitações que cria, formando um conjunto de regras por vezes inacessível aos não iniciados.

A enfiteuse demonstra exatamente isto.

Qualquer pessoa pode se apoderar fisicamente de um imóvel, ainda que não seja dono, e vendê-la a quem deseje comprar. Como forma de limitação no campo da moral, o direito veda a alienação por aquele que não é proprietário. Somente o proprietário pode vender. Esta já é uma limitação (ou seja, direito do proprietário). Entretanto, este proprietário, ao alienar, pode proibir uma nova venda, criando mais uma limitação ao direito, bastando, para tanto, a inclusão de uma cláusula de inalienabilidade. Assim, o pai, temedor da irresponsabilidade do filho, doa um imóvel com a citada cláusula, impedindo que o filho dissipe seu patrimônio. Mas mesmo assim, o direito possibilita uma “brecha”, criando a enfiteuse, que permite a venda não do imóvel (já que esta está vedada quando da estipulação da cláusula de inalienabilidade), mas a venda da superfície do imóvel.

Recapitulando um pouco as aulas de geografia, onde é possível dividir a terra em solo (camada de aproximadamente 30 cm) e subsolo (abaixo do solo). Basicamente, o que se vende é apenas o solo, ou seja, a camada superficial do imóvel, obedecendo, desta forma, todas as limitações (todo o direito) que recai sobre a coisa.

Trata-se, inicialmente, de um contrato (direito obrigacional, pessoal) que, em momento posterior, quando é escriturado de forma pública, adquire a característica de direito real. As partes deste contrato são o enfiteuta (foreiro) e o proprietário (fundeiro). O enfiteuta possui o domínio útil (pode usar a coisa como se dono fosse), enquanto o proprietário apenas possui o domínio direto (permanece como dono, sem, entretanto, quaisquer dos direitos de dono, a não ser receber as rendas do imóvel prevista no contrato). Havendo mais de um enfiteuta (condomínio de enfiteutas), deve-se escolher um, que representará o condomínio (tal como o síndico) perante o proprietário. Este representante é chamado de cabecel.

A enfiteuse (aforamento ou emprazamento) é, portanto, o contrato bilateral e oneroso no qual o proprietário do imóvel com terras incultivadas confere, perpetuamente, a outrem o domínio útil deste, mediante o pagamento de uma pensão anual, invariável, denominada foro.

Ao enfiteuta cabe o jus utendi (usar), abutendi (fruir) e disponendi (dispor). Em se tratando de terra incultivada, o objetivo principal do enfiteuta é justamente a construção de prédio para sua utilização econômica. Se houver previsão do contrato inicial quanto à destinação econômica, esta deve ser respeitada pelo foreiro. Assim, se no contrato constar expressamente cláusula que destine o imóvel à construção de uma escola, o descumprimento da cláusula determina a extinção do contrato.

Ao proprietário, cabe o direito de receber, anualmente, um aluguel, chamado de foro, que é invariável (valor fixo). Em 1916, quando da vigência do Código Civil de Bevilácqua, a ausência da inflação determinava que o valor fosse sempre o mesmo. Entretanto, a partir da metade do século XIX, os tribunais autorizavam a correção monetária apenas, sem inclusão de juros, sob pena de transformar o foro em um valor irrisório.

Ao foreiro ou enfiteuta cabe ainda o direito de adquirir, compulsoriamente contra o senhorio direito (proprietário), o domínio direto, mediante o pagamento de uma determinada indenização, após 10 anos da enfiteuse. Esta indenização é composta de 10 foros mais um laudêmio. Este direito é chamado de direito de resgate, e consolida a propriedade ao enfiteuta, que passa a ser dono exclusivo do solo e subsolo. Veja que a compulsoriedade deste direito independe da vontade do proprietário. Basta o pagamento da indenização e o bem reverte ao foreiro. Havendo recusa do fundeiro, deve-se entrar com a ação judicial, depositando em juízo o valor da indenização.

Desaparecendo o interesse do enfiteuta na continuação do contrato, abre-se-lhe duas possibilidades: desistir do intento ou vendê-lo, já que se trata de direito real. A desistência do empreendimento gerava o retorno da superfície ao proprietário, consolidando a propriedade (o proprietário passava a ter a plena propriedade, tanto do solo quanto do subsolo). Havendo interesse na venda, o enfiteuta era obrigado a oferecer primeiro ao proprietário (direito de preferência ou de preempção). Caso este não quisesse, o enfiteuta poderia vender o bem a outros interessados. Sobre o valor da venda para terceiros, o proprietário teria direito a uma comissão, de no mínimo 2,5%, chamada de laudêmio. Este laudêmio chegou a valores de 100%, já que a lei não previa valor máximo, apenas o mínimo.

A enfiteuse foi rejeitada pelo Código Civil de 2002 em razão da perpetuidade (já que a transforma em uma venda) e do laudêmio (que se tornou uma prática abusiva do proprietário).

Nos termos do art. 2.038, as enfiteuses existentes quando da vigência do novo código permanecerão existindo, sendo vedada, entretanto, a possibilidade de cobrança do laudêmio ou qualquer taxa a título de transferência. Em relação aos terrenos da marinha, conforme já informado, permanece a possibilidade de sua instituição, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, visto que regulado por lei especial, o Decreto-Lei 9.760/46, que determina um valor fixo para o foro, em 0,6% do valor do imóvel.

Superfície

Rejeitada pelo novo código civil, a enfiteuse foi substituída pela Superfície, instrumento mais atual, visto que obrigatoriamente terá prazo determinado e impede o pagamento de laudêmio.

Superfície é o direito real sobre coisa alheia (direito real de uso e gozo) onde o proprietário do bem imóvel concede a outrem o direito de construir ou plantar (portanto pode ser urbano ou rural) em seu terreno, de forma gratuita ou onerosa, por tempo determinado, mediante escritura pública registrada no registro imobiliário.

Difere, portanto, da enfiteuse, já que é necessário um prazo determinado, ainda que extremamente longo. Além disto, o imóvel pode ser incultivado (limpo) ou com obras já iniciadas. É chamado de direito de implante o direito de construir ou plantar sobre o imóvel incultivado. Chama-se direito de sobre-elevação o direito de continuar a construção ou plantação já existente no imóvel.

Em regra, não pode haver utilização do subsolo, a não ser quando previsto no contrato ou, em qualquer hipótese, quando necessário à construção da superfície (já que é impossível a construção de um prédio sem a fundação). É possível também, a título de exemplo, a escavação para colocação de tanques, caso a destinação seja a construção de um posto de gasolina. Proíbe-se, entretanto, a busca por petróleo ou pedras e metais preciosos, já que incompatíveis com o uso da superfície.

Ainda, é possível a existência de uma superfície gratuita, sem pagamento do cânon superficiário (antigo “foro”), embora a regra continue sendo a onerosidade. O cânon pode ser pago de uma só vez, ou de forma parcelada, caso em que, ausente o pagamento de 3 parcelas (situação chamada de “comisso”), é possível o desfazimento do acordo e extinção da superfície (pena de comisso), com perda das benfeitorias realizadas pelo foreiro em benefício do fundeiro.

Cabe, entretanto, ao superficiário, o pagamento de tributos e encargos devidos pelo imóvel. Veja-se que, embora o IPTU seja devido pelo proprietário (Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana), neste caso, por determinação da lei, deverá ser pago pelo superficiário. Também são devidas as taxas de lixo, iluminação pública e limpeza, entre outras tantas.

Em se tratando de direito real, e não pessoal, não se extingue com a morte do superficiário, devendo, neste caso, ser transferido aos herdeiros. Caso não haja herdeiros, ocorre a caducidade, ou seja, a superfície caduca, devendo, nesta hipótese, retornar ao patrimônio do proprietário, sem qualquer indenização.

Fazem parte deste contrato o superficiário (ou foreiro, mas não mais enfiteuta) e o proprietário (fundeiro). O superficiário continua com os direitos de usar, fruir e dispor da coisa, devendo, em caso de alienação, oferecer primeiro ao proprietário (direito de preferência ou preempção, exercido pelo proprietário através da prelação). Não havendo interesse da parte do proprietário, o superficiário pode alienar para qualquer outro interessado, mas não mais haverá a cobrança do laudêmio ou taxa de transferência (art. 1372, § 2.º, Código Civil).

A extinção da superfície ocorre nas seguintes situações:

a) falta de pagamento do cânon (quando em uma única vez) ou de 3 parcelas do cânon (quando parcelado), a que se dá o nome de pena de comisso;
b) advento do termo final;
c) infração às cláusulas contratuais, como no caso do superficiário dar ao imóvel destinação diversa daquela que foi concedida;
d) abandono do imóvel, permitindo o superficiário sua deterioração;
e) desapropriação do imóvel concedido em superfície. A indenização, nesse caso, cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um (art. 1.376, Código Civil), sendo que o valor o imóvel caberá ao proprietário e das obras e benfeitorias pertencerem integralmente ao superficiário.

Uma vez extinta a concessão, o proprietário readquirirá a propriedade plena (solo e subsolo) do imóvel, incluindo-se a construção ou plantação, independentemente de indenização, salvo se houver previsão no contrato determinando o pagamento de indenização pelo foreiro (art. 1.375, Código Civil). Veja que a regra é a devolução do imóvel sem qualquer indenização. A exceção deverá estar expressa no contrato, devidamente registrado no cartório de registro de imóveis.