sábado, 29 de maio de 2010

Teoria da Pressão da Lei

A tarifa de emissão de boleto tem sido sistematicamente declarada ilegal e abusiva, enquadrada no artigo 39, inciso V e artigo 51, inciso IV, ambos do Código de Defesa do Consumidor.

Certo é que, na maioria das vezes, a despesa com a cobrança do débito já se encontra devidamente embutida no valor do produto. Acrescente-se ainda que a taxa de boleto é praticamente uma péssima surpresa que o consumidor terá apenas quando receber a correspondência: o valor cobrado não será exatamente aquele que fora acertado no momento da negociação. PROCONs do Brasil inteiro já tem manifestado repúdio à tarifa, uma vez que não se trata de obrigação do consumidor, e sim do fornecedor. A obrigação do consumidor ao assumir um compromisso pela aquisição de um produto ou serviço, é meramente a de pagar a dívida, não sendo salutar reverter as despesas ao consumidor, que é a parte vulnerável da relação jurídica.

Saliente-se que o fato de o fornecedor disponibilizar outras formas de pagamento, como depósito em conta, débito automático em conta corrente ou cartões de crédito, entre outros, não justifica o repasse de despesas no pagamento em boleto bancário.

O fato é que, tão importante o assunto, tem sido objeto de projetos de lei estaduais e municipais com o intuito de extirpá-la, definitivamente, do costume brasileiro.

Neste ponto, verifica-se que o assunto está intimamente ligado à proibição do fumo. Explico. Em ambos os casos, há vedação a direitos particulares, restrição de direito civil, e, direito civil, conforme dispõe o art. 22 da Constituição Federal, é matéria da União. No caso dos boletos, há complicações ainda envolvendo o direito do consumidor e o direito bancário, que não são matérias passíveis de serem regulamentadas por leis municipais.

A vexata questio é inevitável: até que ponto uma lei federal, ao deixar de ser aplicada, deve ser reeditada pelo ente estadual? E, supondo que mesmo assim a lei estadual não atinja seus objetivos, poderia haver ainda uma reedição pelo legislador municipal? Ao que parece, está havendo uma inversão de poderes - a lei do Município é mais forte que a lei do Estado, que, por sua vez, é mais forte que a lei federal.

Partindo deste pensamento, é possível pensar não apenas no poder da lei, e sim, na sua pressão. A União, embora detenha muito poder, possui uma área gigantesca de atuação, o que torna seu poder menos pressurizado. A remissão à Física é quase uma consequência: a pressão é o quociente entre a força e a respectiva área. Ou seja, a pressão é diretamente proporcional à força (a qual se tem plena consciência no direito), mas é inversamente proporcional à área (que é algo que ainda está meio obscuro, não foi plenamente trazido à lume ainda). Nesta ordem de ideias, o Município, embora detenha um poder bem inferior à União, possui uma área menor, o que o torna muito mais pressurizado. Eis aqui o conceito de "Pressão da Lei", que me parece mais atual que o conceito de "Poder do Ente que edita a Lei".

Em 2009, o então Advogado-Geral da União, José Antonio Dias Toffoli, apresentou parecer ao STF em que defende a inconstitucionalidade da Lei Ordinária 13.541/09, do Estado de São Paulo, que desde 7 de agosto de 2009 restringe o fumo em locais públicos fechados no Estado de São Paulo.

A questão, neste ponto, é meramente jurídica, afastado desde já qualquer dúvida acerca dos malefícios do tabagismo.

Em parecer, o então Advogado-Geral da União entende que a inconstitucionalidade repousa no fato de que a lei estadual, ao tratar de assunto referente a normas de saúde pública, usurpou a competência da União ao impor restrições gerais sobre o fumo. De outro lado, a restrição à liberdade individual, à intimidade e à vida privada somente poderia ter sido feita por lei editada pela União, à quem compete legislar sobre direito civil.

Ponto crucial ainda restou revelado pela resposta dada pelo governo do Estado de São Paulo acerca do parecer do então Advogado-Geral da União, no qual se nega a usurpação de competência, acusando a Lei Federal 9.294/96 de estar desatualizada, além de ser insuficiente para combater os malefícios do tabagismo - o que traz à tona ainda um outro problema: o desuso revoga ou não revoga lei?

Até que ponto os Estados e Municípios podem regulamentar leis federais que não "pegaram"?

A estrutura da federação brasileira é especial na visão de Paulo Bonavides. O Município, elevado à condição de ente federativo, consagrou, a federação tripartite. Segundo o festejado autor, trata-se de uma estruturação ímpar entre os Estados contemporâneos. A verdade, entretanto, é diametralmente oposta ao impor tremendo poder à União, esvaziando por demais a possibilidade de produção legislativa pelos Estados e Municípios, muito mais próximos da realidade do indivíduo.

É tarefa hercúlea explicar ao neófito do Direito que a União só existe porque os Estados se uniram (e daí o termo “União”) e transferiram a um ente superior parcela de seu poder, quando é muito mais fácil verificar que a União, mesmo no regime de liberdade contemporânea, concedeu, por mera liberalidade, uma parcela mínima do seu poder aos Estados, autorizando ainda, aos Municípios, legislarem de forma complementar.

Ora, a bem da verdade, os Estados não possuem poder legislativo residual. Da leitura do art. 22 da Constituição Federal, verificamos que os Estados possuem resquício poder legislativo, o que ocorre, ao que parece, somente porque o Poder Constituinte esqueceu de reservar determinada matéria à União.

Aparentemente, o assunto é correlato à doação de direitos, da qual cuida o Direito Civil. O instituto civil, entretanto, é declarado nulo quando aplicado em sua plenitude, ou ainda quando não se reserve cota suficiente à sobrevivência do doador, conforme dispõe o art. 548 do Código Civil:

“Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.”

É regra de cunho moral. A doação dos bens (incluídos os direitos) a ponto de reduzir o doador à miserabilidade é nula. O Estado Federado, ao conceder parcela enorme do seu poder à União, reduziu infinitamente sua competência legislativa, ferindo princípios éticos e morais, gerando a possibilidade de se declarar abusiva esta cláusula leonina do Contrato Social Brasileiro.

A atual e acanhada produção legislativa por parte dos Estados e Municípios em matérias constitucionalmente reservadas à União revela parte deste problema, que pode – e deveria – gerar o rompimento do atual modelo brasileiro de federação, devolvendo-se aos Estados e Municípios sua competência legislativa.

Em nada adianta conceder amplos poderes à União para legislar sobre quase tudo, quando este ente, por deter vasta área geográfica de atuação, possui reduzida pressão legislativa.