sábado, 29 de maio de 2010

Enfiteuse e Superfície

“Por maior que seja a patifaria, aquele que a comete escapa a toda e qualquer punição, desde que demonstre habilidade suficiente para escapar às malhas da lei penal.”
Rudolf Von Ihering

"Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a Corte o reconhece, porque a lei o permite".
Shylock, em êxtase proclama: "Oh juiz íntegro! Oh juiz sábio! Isso, sim, que é sentença! Vamos logo; preparai-vos."
O juiz então intervém: "Um momentinho apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: 'Uma libra de carne'. Tira, pois, o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito".
Ao ouvir isso, é Graciano, quem não se contém de alegria: "Oh juiz honesto! Toma nota, judeu: quanto ele é sábio!".
Perturbado, Shylock indaga se a lei diz isso. O juiz responde que ele pode ver o texto: "reclamaste justiça, fica certo de que terás justiça, talvez mesmo mais do que desejaras".
Shakespeare em “O Mercador de Veneza”

Enfiteuse

Enfiteuse, aforamento ou emprazamento é um instituto em extinção, já que não há mais previsão legal para sua instituição nas relações civis, remanescendo apenas a possibilidade de sua instituição em terrenos de marinha, já que o próprio Código Civil a prevê, no artigo 2.038, parágrafo 2.º.

Seu objetivo é a aquisição não de um terreno, mas apenas a sua superfície, em razão do preço ou da impossibilidade da compra do terreno. É assim que funciona, por exemplo, em um terreno extremamente caro, onde se compra apenas a superfície por um valor bem mais barato.

Também é possível em relação ao proprietário de uma grande quantidade de terras, e, temendo a perda delas, confere a outrem parcela essencial da propriedade, quer seja, apenas a sua superfície. Do outro lado, o adquirente desta superfície passa a ser o proprietário de fato, ficando com o domínio útil.

Entretanto, sua aplicação mais comum é nos terrenos em que a venda não é permitida, seja em razão do titular (ente público) ou limitação gravada no imóvel (inalienabilidade do imóvel).

É importante verificar que o próprio direito é uma limitação das ações físicas ou dos atos humanos. O direito, entretanto, aprofundando ainda mais, cria possibilidades de limitar as limitações que cria, formando um conjunto de regras por vezes inacessível aos não iniciados.

A enfiteuse demonstra exatamente isto.

Qualquer pessoa pode se apoderar fisicamente de um imóvel, ainda que não seja dono, e vendê-la a quem deseje comprar. Como forma de limitação no campo da moral, o direito veda a alienação por aquele que não é proprietário. Somente o proprietário pode vender. Esta já é uma limitação (ou seja, direito do proprietário). Entretanto, este proprietário, ao alienar, pode proibir uma nova venda, criando mais uma limitação ao direito, bastando, para tanto, a inclusão de uma cláusula de inalienabilidade. Assim, o pai, temedor da irresponsabilidade do filho, doa um imóvel com a citada cláusula, impedindo que o filho dissipe seu patrimônio. Mas mesmo assim, o direito possibilita uma “brecha”, criando a enfiteuse, que permite a venda não do imóvel (já que esta está vedada quando da estipulação da cláusula de inalienabilidade), mas a venda da superfície do imóvel.

Recapitulando um pouco as aulas de geografia, onde é possível dividir a terra em solo (camada de aproximadamente 30 cm) e subsolo (abaixo do solo). Basicamente, o que se vende é apenas o solo, ou seja, a camada superficial do imóvel, obedecendo, desta forma, todas as limitações (todo o direito) que recai sobre a coisa.

Trata-se, inicialmente, de um contrato (direito obrigacional, pessoal) que, em momento posterior, quando é escriturado de forma pública, adquire a característica de direito real. As partes deste contrato são o enfiteuta (foreiro) e o proprietário (fundeiro). O enfiteuta possui o domínio útil (pode usar a coisa como se dono fosse), enquanto o proprietário apenas possui o domínio direto (permanece como dono, sem, entretanto, quaisquer dos direitos de dono, a não ser receber as rendas do imóvel prevista no contrato). Havendo mais de um enfiteuta (condomínio de enfiteutas), deve-se escolher um, que representará o condomínio (tal como o síndico) perante o proprietário. Este representante é chamado de cabecel.

A enfiteuse (aforamento ou emprazamento) é, portanto, o contrato bilateral e oneroso no qual o proprietário do imóvel com terras incultivadas confere, perpetuamente, a outrem o domínio útil deste, mediante o pagamento de uma pensão anual, invariável, denominada foro.

Ao enfiteuta cabe o jus utendi (usar), abutendi (fruir) e disponendi (dispor). Em se tratando de terra incultivada, o objetivo principal do enfiteuta é justamente a construção de prédio para sua utilização econômica. Se houver previsão do contrato inicial quanto à destinação econômica, esta deve ser respeitada pelo foreiro. Assim, se no contrato constar expressamente cláusula que destine o imóvel à construção de uma escola, o descumprimento da cláusula determina a extinção do contrato.

Ao proprietário, cabe o direito de receber, anualmente, um aluguel, chamado de foro, que é invariável (valor fixo). Em 1916, quando da vigência do Código Civil de Bevilácqua, a ausência da inflação determinava que o valor fosse sempre o mesmo. Entretanto, a partir da metade do século XIX, os tribunais autorizavam a correção monetária apenas, sem inclusão de juros, sob pena de transformar o foro em um valor irrisório.

Ao foreiro ou enfiteuta cabe ainda o direito de adquirir, compulsoriamente contra o senhorio direito (proprietário), o domínio direto, mediante o pagamento de uma determinada indenização, após 10 anos da enfiteuse. Esta indenização é composta de 10 foros mais um laudêmio. Este direito é chamado de direito de resgate, e consolida a propriedade ao enfiteuta, que passa a ser dono exclusivo do solo e subsolo. Veja que a compulsoriedade deste direito independe da vontade do proprietário. Basta o pagamento da indenização e o bem reverte ao foreiro. Havendo recusa do fundeiro, deve-se entrar com a ação judicial, depositando em juízo o valor da indenização.

Desaparecendo o interesse do enfiteuta na continuação do contrato, abre-se-lhe duas possibilidades: desistir do intento ou vendê-lo, já que se trata de direito real. A desistência do empreendimento gerava o retorno da superfície ao proprietário, consolidando a propriedade (o proprietário passava a ter a plena propriedade, tanto do solo quanto do subsolo). Havendo interesse na venda, o enfiteuta era obrigado a oferecer primeiro ao proprietário (direito de preferência ou de preempção). Caso este não quisesse, o enfiteuta poderia vender o bem a outros interessados. Sobre o valor da venda para terceiros, o proprietário teria direito a uma comissão, de no mínimo 2,5%, chamada de laudêmio. Este laudêmio chegou a valores de 100%, já que a lei não previa valor máximo, apenas o mínimo.

A enfiteuse foi rejeitada pelo Código Civil de 2002 em razão da perpetuidade (já que a transforma em uma venda) e do laudêmio (que se tornou uma prática abusiva do proprietário).

Nos termos do art. 2.038, as enfiteuses existentes quando da vigência do novo código permanecerão existindo, sendo vedada, entretanto, a possibilidade de cobrança do laudêmio ou qualquer taxa a título de transferência. Em relação aos terrenos da marinha, conforme já informado, permanece a possibilidade de sua instituição, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, visto que regulado por lei especial, o Decreto-Lei 9.760/46, que determina um valor fixo para o foro, em 0,6% do valor do imóvel.

Superfície

Rejeitada pelo novo código civil, a enfiteuse foi substituída pela Superfície, instrumento mais atual, visto que obrigatoriamente terá prazo determinado e impede o pagamento de laudêmio.

Superfície é o direito real sobre coisa alheia (direito real de uso e gozo) onde o proprietário do bem imóvel concede a outrem o direito de construir ou plantar (portanto pode ser urbano ou rural) em seu terreno, de forma gratuita ou onerosa, por tempo determinado, mediante escritura pública registrada no registro imobiliário.

Difere, portanto, da enfiteuse, já que é necessário um prazo determinado, ainda que extremamente longo. Além disto, o imóvel pode ser incultivado (limpo) ou com obras já iniciadas. É chamado de direito de implante o direito de construir ou plantar sobre o imóvel incultivado. Chama-se direito de sobre-elevação o direito de continuar a construção ou plantação já existente no imóvel.

Em regra, não pode haver utilização do subsolo, a não ser quando previsto no contrato ou, em qualquer hipótese, quando necessário à construção da superfície (já que é impossível a construção de um prédio sem a fundação). É possível também, a título de exemplo, a escavação para colocação de tanques, caso a destinação seja a construção de um posto de gasolina. Proíbe-se, entretanto, a busca por petróleo ou pedras e metais preciosos, já que incompatíveis com o uso da superfície.

Ainda, é possível a existência de uma superfície gratuita, sem pagamento do cânon superficiário (antigo “foro”), embora a regra continue sendo a onerosidade. O cânon pode ser pago de uma só vez, ou de forma parcelada, caso em que, ausente o pagamento de 3 parcelas (situação chamada de “comisso”), é possível o desfazimento do acordo e extinção da superfície (pena de comisso), com perda das benfeitorias realizadas pelo foreiro em benefício do fundeiro.

Cabe, entretanto, ao superficiário, o pagamento de tributos e encargos devidos pelo imóvel. Veja-se que, embora o IPTU seja devido pelo proprietário (Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana), neste caso, por determinação da lei, deverá ser pago pelo superficiário. Também são devidas as taxas de lixo, iluminação pública e limpeza, entre outras tantas.

Em se tratando de direito real, e não pessoal, não se extingue com a morte do superficiário, devendo, neste caso, ser transferido aos herdeiros. Caso não haja herdeiros, ocorre a caducidade, ou seja, a superfície caduca, devendo, nesta hipótese, retornar ao patrimônio do proprietário, sem qualquer indenização.

Fazem parte deste contrato o superficiário (ou foreiro, mas não mais enfiteuta) e o proprietário (fundeiro). O superficiário continua com os direitos de usar, fruir e dispor da coisa, devendo, em caso de alienação, oferecer primeiro ao proprietário (direito de preferência ou preempção, exercido pelo proprietário através da prelação). Não havendo interesse da parte do proprietário, o superficiário pode alienar para qualquer outro interessado, mas não mais haverá a cobrança do laudêmio ou taxa de transferência (art. 1372, § 2.º, Código Civil).

A extinção da superfície ocorre nas seguintes situações:

a) falta de pagamento do cânon (quando em uma única vez) ou de 3 parcelas do cânon (quando parcelado), a que se dá o nome de pena de comisso;
b) advento do termo final;
c) infração às cláusulas contratuais, como no caso do superficiário dar ao imóvel destinação diversa daquela que foi concedida;
d) abandono do imóvel, permitindo o superficiário sua deterioração;
e) desapropriação do imóvel concedido em superfície. A indenização, nesse caso, cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um (art. 1.376, Código Civil), sendo que o valor o imóvel caberá ao proprietário e das obras e benfeitorias pertencerem integralmente ao superficiário.

Uma vez extinta a concessão, o proprietário readquirirá a propriedade plena (solo e subsolo) do imóvel, incluindo-se a construção ou plantação, independentemente de indenização, salvo se houver previsão no contrato determinando o pagamento de indenização pelo foreiro (art. 1.375, Código Civil). Veja que a regra é a devolução do imóvel sem qualquer indenização. A exceção deverá estar expressa no contrato, devidamente registrado no cartório de registro de imóveis.

Teoria da Pressão da Lei

A tarifa de emissão de boleto tem sido sistematicamente declarada ilegal e abusiva, enquadrada no artigo 39, inciso V e artigo 51, inciso IV, ambos do Código de Defesa do Consumidor.

Certo é que, na maioria das vezes, a despesa com a cobrança do débito já se encontra devidamente embutida no valor do produto. Acrescente-se ainda que a taxa de boleto é praticamente uma péssima surpresa que o consumidor terá apenas quando receber a correspondência: o valor cobrado não será exatamente aquele que fora acertado no momento da negociação. PROCONs do Brasil inteiro já tem manifestado repúdio à tarifa, uma vez que não se trata de obrigação do consumidor, e sim do fornecedor. A obrigação do consumidor ao assumir um compromisso pela aquisição de um produto ou serviço, é meramente a de pagar a dívida, não sendo salutar reverter as despesas ao consumidor, que é a parte vulnerável da relação jurídica.

Saliente-se que o fato de o fornecedor disponibilizar outras formas de pagamento, como depósito em conta, débito automático em conta corrente ou cartões de crédito, entre outros, não justifica o repasse de despesas no pagamento em boleto bancário.

O fato é que, tão importante o assunto, tem sido objeto de projetos de lei estaduais e municipais com o intuito de extirpá-la, definitivamente, do costume brasileiro.

Neste ponto, verifica-se que o assunto está intimamente ligado à proibição do fumo. Explico. Em ambos os casos, há vedação a direitos particulares, restrição de direito civil, e, direito civil, conforme dispõe o art. 22 da Constituição Federal, é matéria da União. No caso dos boletos, há complicações ainda envolvendo o direito do consumidor e o direito bancário, que não são matérias passíveis de serem regulamentadas por leis municipais.

A vexata questio é inevitável: até que ponto uma lei federal, ao deixar de ser aplicada, deve ser reeditada pelo ente estadual? E, supondo que mesmo assim a lei estadual não atinja seus objetivos, poderia haver ainda uma reedição pelo legislador municipal? Ao que parece, está havendo uma inversão de poderes - a lei do Município é mais forte que a lei do Estado, que, por sua vez, é mais forte que a lei federal.

Partindo deste pensamento, é possível pensar não apenas no poder da lei, e sim, na sua pressão. A União, embora detenha muito poder, possui uma área gigantesca de atuação, o que torna seu poder menos pressurizado. A remissão à Física é quase uma consequência: a pressão é o quociente entre a força e a respectiva área. Ou seja, a pressão é diretamente proporcional à força (a qual se tem plena consciência no direito), mas é inversamente proporcional à área (que é algo que ainda está meio obscuro, não foi plenamente trazido à lume ainda). Nesta ordem de ideias, o Município, embora detenha um poder bem inferior à União, possui uma área menor, o que o torna muito mais pressurizado. Eis aqui o conceito de "Pressão da Lei", que me parece mais atual que o conceito de "Poder do Ente que edita a Lei".

Em 2009, o então Advogado-Geral da União, José Antonio Dias Toffoli, apresentou parecer ao STF em que defende a inconstitucionalidade da Lei Ordinária 13.541/09, do Estado de São Paulo, que desde 7 de agosto de 2009 restringe o fumo em locais públicos fechados no Estado de São Paulo.

A questão, neste ponto, é meramente jurídica, afastado desde já qualquer dúvida acerca dos malefícios do tabagismo.

Em parecer, o então Advogado-Geral da União entende que a inconstitucionalidade repousa no fato de que a lei estadual, ao tratar de assunto referente a normas de saúde pública, usurpou a competência da União ao impor restrições gerais sobre o fumo. De outro lado, a restrição à liberdade individual, à intimidade e à vida privada somente poderia ter sido feita por lei editada pela União, à quem compete legislar sobre direito civil.

Ponto crucial ainda restou revelado pela resposta dada pelo governo do Estado de São Paulo acerca do parecer do então Advogado-Geral da União, no qual se nega a usurpação de competência, acusando a Lei Federal 9.294/96 de estar desatualizada, além de ser insuficiente para combater os malefícios do tabagismo - o que traz à tona ainda um outro problema: o desuso revoga ou não revoga lei?

Até que ponto os Estados e Municípios podem regulamentar leis federais que não "pegaram"?

A estrutura da federação brasileira é especial na visão de Paulo Bonavides. O Município, elevado à condição de ente federativo, consagrou, a federação tripartite. Segundo o festejado autor, trata-se de uma estruturação ímpar entre os Estados contemporâneos. A verdade, entretanto, é diametralmente oposta ao impor tremendo poder à União, esvaziando por demais a possibilidade de produção legislativa pelos Estados e Municípios, muito mais próximos da realidade do indivíduo.

É tarefa hercúlea explicar ao neófito do Direito que a União só existe porque os Estados se uniram (e daí o termo “União”) e transferiram a um ente superior parcela de seu poder, quando é muito mais fácil verificar que a União, mesmo no regime de liberdade contemporânea, concedeu, por mera liberalidade, uma parcela mínima do seu poder aos Estados, autorizando ainda, aos Municípios, legislarem de forma complementar.

Ora, a bem da verdade, os Estados não possuem poder legislativo residual. Da leitura do art. 22 da Constituição Federal, verificamos que os Estados possuem resquício poder legislativo, o que ocorre, ao que parece, somente porque o Poder Constituinte esqueceu de reservar determinada matéria à União.

Aparentemente, o assunto é correlato à doação de direitos, da qual cuida o Direito Civil. O instituto civil, entretanto, é declarado nulo quando aplicado em sua plenitude, ou ainda quando não se reserve cota suficiente à sobrevivência do doador, conforme dispõe o art. 548 do Código Civil:

“Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.”

É regra de cunho moral. A doação dos bens (incluídos os direitos) a ponto de reduzir o doador à miserabilidade é nula. O Estado Federado, ao conceder parcela enorme do seu poder à União, reduziu infinitamente sua competência legislativa, ferindo princípios éticos e morais, gerando a possibilidade de se declarar abusiva esta cláusula leonina do Contrato Social Brasileiro.

A atual e acanhada produção legislativa por parte dos Estados e Municípios em matérias constitucionalmente reservadas à União revela parte deste problema, que pode – e deveria – gerar o rompimento do atual modelo brasileiro de federação, devolvendo-se aos Estados e Municípios sua competência legislativa.

Em nada adianta conceder amplos poderes à União para legislar sobre quase tudo, quando este ente, por deter vasta área geográfica de atuação, possui reduzida pressão legislativa.

Direito Comercial - Introdução

Introdução
Iniciando o curso de Direito Empresarial - ou Direito Comercial, como prefere a doutrina tradicional -, vamos conhecer um pouco da história deste ramo do Direito, que passa por momento de instabilidade após diversas alterações legislativas.

Embora o Império Romano tenha presenciado a prática reiterada de atos de troca, não é possível reconhecer um direito especializado na regulamentação das matérias e assuntos relacionados ao comércio. Historiadores relatam, entretanto, momentos que é possível verificar a solução de disputas relacionadas aos atos comerciais. O mais importante consistia no esquartejamento do devedor que perdia o controle de seus débitos. Desta forma, o grupo de credores atribuía para si o direito de esquartejar, cortar o devedor aos pedaços, dando a cada credor o direito de receber uma parte do devedor proporcional ao tamanho da dívida.

Apenas a título de curiosidade, segundo a mitologia, a alma de qualquer indivíduo não descansa enquanto o corpo não for enterrado. Desta forma, o esquartejamento obrigava a família do devedor morto a "comprar" seus pedaços a fim de uni-los, e garatir um enterro.

Com o advento da Lex Poetelia Papiria em 428 a.C., foi possível separar o direito ao patrimônio do direito à vida, de forma que o devedor passa a responder unicamente com o total de seus bens, impossibilitando, desta forma, o pagamento da dívida com a própria vida.

Ressalta-se que, na época, havia duas formas de aplicação do direito: o jus civile, que somente era aplicado aos cidadãos romanos (e portanto, era utilizado para regular as relações comerciais nacionais) e o jus gentium, que era aplicado a todos os cidadãos do mundo, e, por via reflexa, aplicado nas relações comerciais internacionais.

Na Idade Média, mais precisamente no século XII é possível verificar a existência de alguns contratos comerciais, entre eles, o foenus nauticus, relacionados às expedições de navios em busca de produtos do exterior. Os grandes mercados existentes na Itália favoreceram a criação de um Direito Comercial, ainda que bastante rudimentar. Neste momento histórico, deve ser lembrada a existência da bancarrota, que consistia em um "direito" de quebrar o estabelecimento do devedor (quando não o próprio devedor), pertencente ao grupo de credores que, após deliberação, verificava a impossibilidade de pagamento do débito.

Com o desvio das grandes negociações da Itália para a França, verificou-se o surgimento das Corporações de Ofício (guildas), nas quais um grupo de comerciantes atraía para si o direito de dizer quem poderia exercer a mercancia. Estes órgãos exerciam o poder de fiscalização, normatização e julgamento de causas que envolvessem comerciantes, ainda que a outra parte fosse um particular. Este é o primeiro momento do Direito Comercial, podendo assim, ser denominado Período Subjetivo Corporativista, porque comerciante era aquele sujeito (subjetivo) autorizado pela guilda (corporação) a exercer a mercancia.

Os burgueses, nesta época, exerciam o comércio de forma ilegal, porque não eram autorizados pelas guildas. Além disto, havia uma grande repulsa pelo governo da época em relação aos burgueses, de forma que uma revolução iluminista era esperada.

Com a ascenção de Napoleão ao poder, apoiado pelos burgueses, surgem, a partir do ano de 1804, vários códigos jurídicos. A História dá conta que o próprio Napoleão participou da produção legislativa, tendo, em 1808, elaborado o Código Comercial, o primeiro sistema comercial organizado do mundo. A partir deste código, deixa de existir as Corporações de Ofício, uma vez que comerciante passa a ser aquele que simplesmente pratica qualquer ato considerado comercial. É a chamada Teoria dos Atos do Comércio. Desta forma, para verificação da condição de comerciante, basta que se verifique se o indivíduo pratica determinado ato arrolado como sendo um ato de comércio. E é por este motivo que chamamos este segundo momento de Período Objetivo.

O Código de Napoleão foi copiado por diversos países cujo direito é baseado na cultura romana. Embora o Brasil não tenha adotado expressamente a teoria dos atos do comércio, o primeiro Código Comercial Brasileiro (Lei 556), elaborado em 1850, identifica o comerciante como aquele que pratica a mercancia com habitualidade.

Esta lei, entretanto, carecia de uma complementação, pois era necessário listar quais atos eram considerados mercancia. No mesmo ano, então, surge o Regulamento 737, que no seu art. 19 informa o que poderia ser considerado comério.

O comércio, entretanto, é matéria que se desenvolve dia a dia, sendo que já em 1875 a lista de atividades era precária e insuficiente, sendo revogado, neste ano, o regulamento. A partir deste instante, o art. 19 do Regulamento 737/1850 era apenas exemplificativo, e embora revogado, servia como modelo para verificação da mercancia. Apenas a título de exemplo, cite-se que as atividades relacionadas à venda de imóveis (imobiliárias) e prestação de serviços não estavam incluídas no rol, de forma que não era possível reconhecer o comério, na acepção jurídica, nestas atividades.

A teoria dos atos do comércio, para continuar existindo, necessitaria de uma atualização paulatina, de forma que a cada ano seria necessário um remendo a fim de incluir novas atividades que poderiam ser considerados atos de comércio.

Em 1942, a Itália aprova o novo Código Civil, incluindo em seus artigos toda a matéria referente às empresas e ao direito do trabalho, unificando, desta forma, o direito privado. Neste código, positiva-se o direito de empresa, deixando de lado o conceito de ato de comércio, passando a ser adotada a pessoa do empresário como objeto de estudo do Direito Comercial. Esta nova projeção do direito acaba por alterar inclusive o nome da matéria, que passa a ser Direito Empresarial, já que o empresário se torna o centro do estudo da matéria. É o terceiro momento, chamado de Período Subjetivo Moderno, que adota a Teoria da Empresa.

De acordo com o jurista italiano Alberto Asquini, que vivenciou o surgimento desta teoria, a empresa é um "fenômeno jurídico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que ali concorrem".

Para Asquini, era possível identificar quatro perfis de empresa. O primeiro era o perfil subjetivo, de forma que empresa é a pessoa que "exercita profissionalmente atividade econômica organizada com o fim da produção e da troca de bens ou serviços."

O segundo perfil, chamado funcional, confunde-se com o próprio conceito de atividade empresarial, podendo a empresa ser considerada uma força dirigida a um determinado objetivo capaz de gerar bens ou serviços.

Pelo perfil objetivo ou patrimonial, a empresa é considerada como um conjunto de bens, que se destina à atividade empresarial (finalidade específica).

Por fim, o quarto perfil, chamado corporativo, pelo qual a empresa seria um núcleo organizado em função de um fim econômico comum, ou seja, ambas as classes, operários e empresários, visavam a formação de um equilíbrio de forças.

A Teoria da Empresa foi adotada pelo Código Civil de 2002, que, a exemplo do Código Italiano, incorporou as matérias empresarias, ainda que tenha deixado de lado algumas leis específicas, como a lei do Cheque, lei de Locações Comerciais e Lei das Sociedades Anônimas.

Pelo art. 966 do Código Civil Brasileiro, considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços.